Sunday, May 27, 2007

abstracção e teatro




A arte que se «reclama» abstracta é recente. É certo que tem fugido com o rabo à seringa a qualquer etiqueta que a relacione com o teatro, se bem que um crítico americano, aquando do surgimento do minimalismo, os acusava, em nome de uma abstracção mais pura, de teatralizar. No entanto a história da «abstracção» e dos conceitos é indossoluvel do teatro, e é o que a torna excitante.

Foi a teatralidade dos gregos que tornou determinadas palavras mais acutilantes. Górgias, como já referimos, tem uma concepção teatral da sabedoria e do pensamento. Platão parodia o teatro escrevendo diálogos - teatraliza a arte de refutar de uma forma mais convincente. Na verdade desenvolve a noção de personagem de uma forma contundente (e particularmente mimética), e dá-lhe uma liberdade conceptual e um poder de divagação fabulosos. Podemos discutir se os «conteúdos» dos seus diálogos são identicos àos conteúdos da suas formas, mas de nada adiantará aqui esgrimirmos argumentações.Aristótelas também escreveu diálogos que não nos chegaram. Pode ser um brilhante adversário da ambiguidade, mas de livro ,para livro as suas opiniões resvalam ligeiramente. Aristóteles defendeu a teatralidade na sua poética sem hesitações. Nos filósofos helenistas e romanos a teatralidade está muito mais ausente, se exceptuarmos a tradição menipeica e em particular o muito tardio Luciano.

A India e a China também vão conhecer o teatro, mas bem mais tarde. Há um famoso tratado teatral, o Natyashastra que é contemporâneo do dramaturgo antigo mais conhecido, Bhásha, no século primeiro. Provavelmente a popularidade teatral, assim como da dança, fazem com que uma divindade, Shiva incarne essa dimensão. Só depois do declinio budista, na idade de ouro das artes, é que o pensamento hinduista, em oposição aos anti-teatrais budistas, introduz a teatralidade no coração do próprio «absoluto». Os Shiva Sutras, de Utpaladeva, falam da consciência, e do Absoluto como um actor. A sua linhagem, que inclui Abhinavagupta e Kshemarája, preocupar-se-á com questões «teatrais» e divulgam a curiosa ideia de que as diversas filosofias são como diferentes versões teatrais de uma mesma peça. Quanto aos chineses (e por arrastão os japoneses)desconheço as sequelas na arte do pensamento, mas se escarafunchar talvez encontre alguma coisa, mesmo nos tradicionalmente iconoclastas meandros budistas.

Nietzsche foi o filósofo mais emblemático da teatralidade, mas esta desponta no Ocidente com o renascimento, expandindo-se no mundo barroco com Shakespeare, Giordano Bruno e Cyrano de Bergerac, entre outros. Durante muito tempo namorará com a filosofia (veja-se Fontanelle, Diderot, Sade, Holderlin).

Como a arte abstracta é a expressão de um prazer «intelectual» e conceptual vindo do mundo filosófico, e como este consegue conciliar, pelo menos nos autores referidos, a dimensão metafórica e a teatral, sinto que é útil reunir estas àguas que militantemente se tentaram separar (os militantes do «conceito puro» e os militantes do regresso à pureza metafórica da linguagem)e reivindicar, mais uma vez uma abstacção teatral, operática, carnavalesca. Libertá-la dos espartilhos que fazem dos sucessores de Mondrian uns tipos com um ar burocrático. Há um fundo animalesco e emocional mesmo nos mais rigorosos enunciados. Evohé!

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