Sunday, May 27, 2007

ciladas burlescas



Recordo mais uma vez um dos maravilhosos fragmentos de Górgias, o sofista, que miraculosamente chegou até nós, e onde este declara que iludir e ser iludido é mais justo do que distanciar-se das ilusões, e que deixar-se iludir é mais sábio do que lhe resistir suspeitamente. As linguagens são afrodisíacas, e a arte abstracta não lhe escapa. A estética indiana bem pode falar dos 8 rasas (ou emoções estéticas básicas) e da sua tendência (segundo Abhinavagupta que o introduziu mais tarde, por volta do sec. X) para um nono rasa (o da tranquilidade), mas entre os rasas é quase sempre o «erótico» que predomina, não sei se como preludio da tranquilidade, se como o melhor interprete desse estremecimento de tudo, que não só atravessa todos os detalhes do mundo, quanto o absoluto que o absolve, a que também Abhinavagupta e seus percursores chamam spanda.

Irei ainda mais longe na suposição de que todas as linguagens potênciam os seus dramas e comédias, e que, não sei porquê, há uma trabalheira em tentar disfarçar o que é encantamento, artificio e teatralidade na exploração das linguagens. Por baixo de cada prática sussurra algo shakespeareano, mas esses demónios só emergem raramente como sobreabundância. E na sobrabundância o humor é inevitável (outro dos rasas, meus amigos!). Humor é, pois claro, marotice. A sobreabundância é por si já um problema politico e ético, porque em nada facilita as coisas, e porque torna as questões menos òbvias, mais ambiguas, e faz com que cada momento das linguagens seja mais uma cilada, que nos pode mandar quer para a tal tranquilidade (burguesa ou ascética), quer para o profundo dos infernos da vida

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